Volto ao trabalho na segunda, mas antecipo um texto que, dado o que leio por aí, me parece necessário. O terrorismo islâmico sequestrou boa parcela da consciência do Ocidente. Antes que se impusesse por intermédio da brutalidade e da barbárie, seus agentes voluntários e involuntários fizeram com que duvidássemos dos nossos próprios valores. Antes que matassem nossas crianças, nossos soldados, nossos jornalistas, nossos chargistas, nossos humoristas, atacaram, com a colaboração dos pusilânimes do lado de cá, os nossos valores. “Nossos, de quem, cara-pálida?”, perguntará um dos cretinos relativistas do Complexo Pucusp. Os do Ocidente cristão e democrático.
Mesmo gozando de merecidas férias, comprometido principalmente com o nascer e o pôr do sol, acompanhei o que se noticiou no Brasil e no mundo sobre o ataque covarde ao jornal francês “Charlie Hebdo”, que deixou 12 mortos na França. Na nossa imprensa e em toda parte, com raras exceções, a primeira preocupação, ora vejam!!!, era não estimular a “islamofobia”, uma mentira inventada pela máquina de propaganda dos centros culturais de difusão do Islã no Ocidente. Nota à margem: a “fobia” (se querem dar esse nome) religiosa que mais mata hoje é a “cristofobia”. Todo ano, mais ou menos 100 mil cristãos são assassinados mundo afora por causa de sua religião. E não se ouve a respeito um pio a Orientes e Ocidentes.
Uma curiosidade intelectual me persegue há tempos: por que cabe ao Ocidente cristão combater a suposta “islamofobia”? Por que as próprias entidades islâmicas também não se encarregam no assunto? Sim, muitas lideranças mundo afora repudiaram o ataque ao jornal francês, mas sugerindo, com raras exceções, nas entrelinhas, que se tratava de uma resposta injusta e desproporcional a uma ofensa que de fato teria sido desferida contra o Islã e o Profeta. E então chegamos ao cerne na questão.
Sou católico. As bobagens e ignorâncias que se dizem contra a minha religião — e já faz tempo que o ateísmo deixou de ser um ninho de sábios —, com alguma frequência, me ofendem. E daí? Há muito tempo, de reforma em reforma, o catolicismo entendeu que não é nem pode ser estado. A religião que nasceu do Amor e que evoluiu, sim, para uma organização de caráter paramilitar, voltou ao seu leito, certamente não tão pura e tão leve como nos primeiros tempos, maculada por virtudes e vícios demasiadamente humanos, mas comprometida com a tolerância, com a caridade, com a pluralidade, buscando a conversão pela fé.
Não é assim porque eu quero, mas porque é: o islamismo nasce para a guerra. Surge e se impõe como organização militar. Faz, em certa medida, trajetória contrária à do catolicismo ao se encontrar, por um tempo ao menos, com a ciência, mas retornando, pela vontade de seus líderes, ao leito original. Sim, de fato, ao pé da letra, há palavras de paz e de guerra, de amor e de ódio, de perdão e de vingança tanto no Islã como na Bíblia. De fato, também no cristianismo, há celerados que fazem uma leitura literalista dos textos sagrados. E daí? Isso só nos afasta da questão central.
Em que país do mundo o cristianismo, ainda que por intermédio de seitas, se impõe pela violência e pelo terror? Em que parte da terra a Bíblia é usada como pretexto para matar, para massacrar, para… governar? É curioso que diante de atos bárbaros como o que se viu na França, a primeira inclinação da imprensa ocidental também seja demonstrar que o Islã é pacífico. Desculpem-me a pergunta feita assim, a seco: ele é “pacífico” onde exatamente?
Em que país islâmico, árabe ou não, os adeptos dessa fé entendem que os assuntos de Alá não devem se misturar com os negócios de estado? À minha moda, sou também um fundamentalista: um fundamentalista da democracia. Por essa razão, sempre que me exibem a Turquia como exemplo de um país majoritariamente islâmico e democrático, dou de ombros: não pode ser democrático um regime em que a imprensa sofre perseguição de caráter religioso — ainda que venha disfarçada de motivação política, não menos odiosa, é claro!
Cabe às autoridades islâmicas, das mais variadas correntes, fazer um trabalho de combate à “islamofobia”. E a fobia será tanto menor quanto menos o mundo for aterrorizado por fanáticos. Ora, não é segredo para ninguém que o extremismo islâmico chegou ao Ocidente por intermédio de “escolas” e “centros de estudo” que fazem um eficiente trabalho de doutrinação, que hoje já não se restringe a filhos de imigrantes. A pregação se mistura à delinquência juvenil, atraída — o que é uma piada macabra — pela “pureza” de uma doutrina que não admite dúvidas, ambiguidades e incertezas.
Ainda voltarei, é evidente, muitas vezes a esse assunto, mas as imposturas vão se acumulando. Há, sim, indignação com o ocorrido, mas não deixa de ser curioso que a imprensa ocidental tenha convocado os chargistas a uma espécie de reação. Sim, é muito justo que estes se sintam especialmente tocados, mas vamos com calma! O que se viu no “Chalie Hebdo” não foi um ataque ao direito de fazer desenhos, mas ao direito de ter uma opinião distinta de um primado religioso que, atenção!, une todas as correntes do Islã.
É claro que um crente dessa religião tem todo o direito de se ofender quando alguém desenha a imagem do “Profeta” — assim como me ofendo quando alguém sugere que Maria não passava de uma vadia, que inventou a história de um anjo para disfarçar uma corneada no marido. Ocorre que eu não mato ninguém por isso! Ocorre que não existem líderes da minha religião que excitam o ódio por isso. Se um delinquente islâmico queima uma Bíblia, ninguém explode uma bomba numa estação de trem.
E vimos, sim, a reação dos chargistas, mas, como todos percebemos, quase ninguém se atreveu a desenhar a imagem do “Profeta” — afinal de contas, como sabemos, isso é proibido, não é? Que o seja em terras islâmicas, isso é lá problema deles, mas por que há de ser também naquelas que não foram dominadas pelos exércitos de Maomé ou de onde eles foram expulsos?
Tony Barber, editor para a Europa do “Financial Times”, preferiu, acreditem, atacar o jornal francês. Escreveu horas depois do atentado: “Isso [a crítica] não é para desculpar os assassinos, que têm de ser pegos e punidos, ou para sugerir que a liberdade de expressão não deva se estender à sátira religiosa. Trata-se apenas de constatar que algum bom senso seria útil a publicações como ‘Charlie Hebdo’ ou ‘Jyllands-Posten’ da Dinamarca, que se propõem a ser um instrumento da liberdade quando provocam os muçulmanos, mas que estão, na verdade, sendo apenas estúpidos”.
Barber é um vagabundo moral, um delinquente, e essa delinquência se estende, lamento, ao comando do “Financial Times”, que permitiu que tal barbaridade fosse publicada. Alguém poderia perguntar neste ponto: “Mas onde fica, Reinaldo, o seu compromisso com a liberdade de expressão se acha que o texto de Barber deveria ser banido do FT?”. Respondo: a nossa tradição, que fez o melhor do que somos, não culpa as vítimas, meus caros. Barber usa a liberdade de expressão para atacar os fundamentos da… liberdade de expressão.
Todas as religiões podem ser praticadas livremente nas democracias ocidentais porque todas podem ser igualmente criticadas, inclusive pelos estúpidos. Mas como explicar isso a um estúpido como Barber, um terrorista que já está entre nós?
Por Reinaldo Azevedo, na VEJA.com
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