JOÃO BATISTA OLIVEIRA: “A escola perdeu sua função social no Brasil”, diz estudioso

JOÃO BATISTA OLIVEIRA: “A escola perdeu sua função social no Brasil”, diz estudioso

João Batista Oliveira: "a função histórica e antropológica da escola é transmitir conhecimento" (Pedro Franca/Agência Camara /VEJA)
João Batista Oliveira: “a função histórica e antropológica da escola é transmitir conhecimento” (Pedro Franca/Agência Camara /VEJA)

Para especialista, missão primordial de transmitir conhecimento vem sendo esmagada pela ideologia que reduz a educação a ferramenta de dominação

Por Bianca Bibiano, na Veja.com

Pouca gente discorda que é papel da escola transmitir os conhecimentos imprescindíveis ao desenvolvimento do indivíduo e, por tabela, do país. Para o estudioso João Batista Oliveira, contudo, a missão vem sendo esmagada no Brasil por políticas mais interessadas em propagandear números grandiosos e por ideologias cujo interesse passa longe da educação. O resultado é o fracasso do ensino no país. “Perdemos a noção da função social da escola. Ela deixou de ser cobrada pelo cumprimento de suas obrigações essenciais e passou a ser cobrada por milhares de coisas que ela não tem condição de fazer, como cuidar da educação sexual, educação para o trânsito, para o consumo etc.”, diz Oliveira. A história de como se deu esse processo é dissecada no livro Repensando a Educação Brasileira, que chega às livrarias nesta semana, em que o pesquisador discute qual é, enfim, a função da escola e propõe medidas para recolocar nos trilhos professores e escolas. Oliveira atuou durante vinte anos como consultor do Banco Mundial e da Organização Internacional do Trabalho e ajudou a implantar projetos de educação em mais de sessenta países. No Brasil, foi secretário executivo do Ministério da Educação e, desde 2006, está à frente do Instituto Alfa e Beto, organização não governamental que promove a alfabetização em redes públicas de ensino. Em dezembro, a ONG vai realizar pela primeira vez o Prêmio Prefeito Nota 10, iniciativa que vai identificar e recompensar o município brasileiro que mantém a melhor rede de ensino do país. Confira a seguir a entrevista que ele concedeu a VEJA.com.

Como o senhor vê o atual debate sobre educação no Brasil?

Em nosso país, não há debate. A educação é tratada somente do ponto de vista de leis, regulamentos, aumento de vagas, interesses de professores e sindicatos. A política de educação sempre foi pautada pela ideia de crescimento. Ou seja, mesmo que país esteja vendo sua taxa de natalidade cair, ainda se vendem promessas de mais vagas, além de mais tempo na escola, mais disciplinas no currículo, mais regulamentação. É uma estratégia que interessa aos políticos, porque gera emprego para professores e mais construções para somar ao orçamento, que caem bem em período eleitoral. De certo modo, essa visão distorceu o debate, que virou um discurso de carências: falta isso, falta aquilo. As políticas governamentais induziram a essa situação e eliminaram os espaços para discutir outras questões, como a aprendizagem do aluno. No quadro atual, o estudante é mais um subproduto desse debate. Na outra ponta, existe a responsabilidade da academia, com professores e pesquisadores que rechaçam qualquer ideia contrária a suas ideologias. Eles fazem uma doutrinação ideológica e antiquada de que educação é um objetivo de dominação e de controle e que a pedagogia não interessa.

De onde surgiu essa ideia?

Nas décadas de 1970 e 1980, sob a influência dos movimentos populares que cresceram na França em 1968, houve uma inflexão no discurso pedagógico brasileiro. Até então, ele era razoavelmente formalista, sempre com uma parte legal muito forte, assim como a atuação marcante do Conselho Nacional de Educação. Do ponto de vista pedagógico, era razoável. Era normal falar em currículo, cobrar do professor conhecimento de sua disciplina, aprovar o aluno que sabe e reprovar o que não sabe, tudo dentro de uma concepção acrítica e ingênua. Isso era natural, como o é dizer que a mãe deve amar e amamentar seus filhos. Ideias apoiadas nas teorias de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, na França, e de Paulo Freire, no Brasil, que afirmavam que a escola reproduz desigualdades sociais porque ensina só aquilo que os burgueses querem. Com eles, ou não se ensina nada ou se ensina a fazer revolução. Enquanto os demais países passaram pela contestação e mudaram o discurso, no Brasil a ideia se tornou uma crítica hegemônica e permanente.

Como esse pensamento chegou à sala de aula?

As faculdades que formam professores foram dominadas por essas pessoas. Eu tenho amigos que ainda atuam nas faculdades de educação e a vida deles é um inferno, porque não há espaço para diálogo. Tiraram dos currículos dos cursos de pedagogia métodos quantitativos e aulas de estatística, porque as pessoas que dominaram os cursos eram contra essas ideias. Enquanto isso, muitos países avançaram e passaram a medir o ensino e atacar as deficiências baseados em dados empíricos. Ao mesmo tempo, temos uma sociedade de baixa renda que não cobra melhorias, porque segue o discurso político de que mais é melhor. Segundo esse discurso, há mais escolas, uniforme, transporte, merenda, mais chances de ir à universidade: logo, não se poderia dizer que a educação está uma porcaria. Não há, contudo, contestação da qualidade. Já para as classes média e alta, é confortável essa situação, porque elas precisam fazer muito pouco para competir com a mediocridade. Não há, por exemplo, disputa de vaga na USP com o mercado internacional. A elite deita em berço esplêndido e é acomodada.

Pensando do ponto de vista econômico, não seria mais interessante pleitear melhor educação e garantir desenvolvimento para o país?

Com certeza. É tão necessário que eu não consigo entender por que os empresários são tão bonzinhos em relação à questão da educação brasileira. Todo mundo sabe que o maior recurso das economias modernas são as pessoas, ou seja, seu conhecimento e competências. Isso vale mais que soja, ouro, pré-sal. Os países com que competimos vão ganhar a competição na medida em que tiverem gente mais bem preparada. Gente capacitada é dinheiro, e os empresários sabem disso. Não dá para entender essa vocação suicida das elites empresariais. Só reclamar por mais cursos técnicos não adianta, porque não é só a mão de obra treinada que importa. Quanto mais gente bem formada tiver no país, independente do curso, melhor será para a economia. Talvez seja fruto do bom mocismo daqueles que esperam o apoio do BNDES sem criticar nada. O empresariado seria o principal ator para forçar uma mudança. Eles têm recursos, bons modelos de gestão, conseguem influenciar leis no Congresso, reduzir impostos. Enfim, têm uma força brutal que, se colocada para cobrar mudanças na educação, faria uma revolução.

O que é possível fazer para mudar esse quadro?

Além de contar com a influência do empresariado, também é preciso rever a tônica do debate. Precisamos ir mais fundo, nos perguntar o que é a educação. Afinal, perdemos essa noção. A escola deixou de ser cobrada pelo cumprimento de suas obrigações essenciais e passou a ser cobrada por milhares de coisas que ela não tem condição de fazer, como cuidar da educação sexual, educação para o trânsito, para o consumo etc. A escola perdeu sua função social.

Qual é, afinal, essa função?

A meu ver, a função histórica e antropológica é transmitir conhecimento. Conhecimento que é relevante para o desenvolvimento das pessoas, ou seja, aquele proveniente das disciplinas básicas: matemática, instrumentos da lógica, linguagem, ciências. Mas os professores são contra ensinar, são contra transmitir conhecimento, tudo naquela lógica da ideologia que já citei. Por isso, há movimentos tão fortes contra a implantação de um currículo nacional. Esses grupos são contra currículo não só por uma questão pedagógica: trata-se de um problema ideológico. Eles acham que a escola não pode definir o que deve ser ensinado. Mas, sem isso, o Brasil sai perdendo. Se não há um currículo, não dá para saber o que ensinar e como avaliar e formar o professor. Nós perdemos o fio da meada enquanto os outros países, que também passaram por mudanças, mantiveram o foco no que deve ser ensinado. O conceito do que é educação precisa ser recomposto, mas isso é difícil, porque os que manipulam a sociedade seguem apenas uma linha de pensamento hegemônico e não estão abertos a discussão.

Como o senhor avalia as mais recentes políticas que tratam do ensino, como o Plano Nacional de Educação (PNE), sancionado pela presidente Dilma Rousseff em junho?

Como não temos a cultura da educação, onde se cria a definição de escola, nós não temos também as instituições que compõem o sistema educacional. Nós não temos uma ideia clara do papel do professor, do gestor, do currículo. Nós temos, se muito, uma ideia de avaliação, como Enem e Prova Brasil, e uma ideia de financiamento, ou seja, quem paga a conta. No mais, nenhuma outra instituição. Na falta disso, a política educacional se baseia em planos como o PNE, sujeitos a descontinuidade e que fracassam em 70% dos casos, como já foi comprovado por outros estudiosos. É tudo feito no vácuo cultural, sem as instituições, que também são parte da cultura. A educação no Brasil é uma terra arrasada.

No livro, o senhor propõe mudanças na avaliação e financiamento do ensino. Como?

A primeira delas é uma mudança na avaliação do ensino. A interpretação dos índices educacionais do país é feita como em uma tabela de campeonato, mirando em quem tem a melhor ou pior nota. E na educação não se pode fazer isso. Aquela escola que tem a melhor nota não é, necessariamente, a que tem o melhor ensino. Isso depende do aluno, da família, do DNA, não só da escola. É preciso descontar esses fatores para encontrar o efeito diferencial. Há inúmeros estudos nesse sentido, um deles do atual presidente do Inep (órgão do Ministério da Educação responsável pelas avaliações), Francisco Soares. Ele diz que a melhor escola é aquela que acrescenta mais conhecimento ao aluno, descontando todos os fatores que não são da escola. É importante ressaltar o efeito escola e não só dizer que uma ou outra é melhor. O segundo ponto é o financiamento. Dado que temos uma mudança na demografia e um índice de repetência muito alto, uma abordagem de choque seria fazer investimentos em educação proporcionais à sua população do Estado ou município, e não ao número de alunos, como é feito hoje. Isso daria mais flexibilidade para os entes da federação escolherem como querem dividir investimebntos nos diferentes níveis do ensino. Um caminho é incentivar a política de municipalização do ensino, que entrou em debate, mas não foi levada adiante.

O senhor também trata da questão da formação do professor. O que fazer?

Não podemos pensar o professor em partes, temos que olhar o todo. É preciso repensar os meios de contratação, a formação inicial, os planos de carreira, de estágio probatório e de avaliação. Tem que ser uma equação para atrair os melhores profissionais, oferecer bons curso, bons estágios, carreiras interessantes e, é claro, colher resultados na aprendizagem do aluno. Um plano que se concretiza a longo prazo. Enquanto isso, no curto prazo, é preciso pensar em políticas de transição. O Brasil insiste em pegar qualquer pessoa sem formação e acha que vai prepará-la para o magistério oferecendo-lhe um curso de 30 horas. Não vai. A transição tem que estar associada à mudança, pensando em mecanismos de contratação e demissão e, acima disso, pensando no que esses professores sem formação vão ensinar enquanto isso.

 Como se define isso?

Com sistema de ensino estruturado e consistente. Imagine que o professor da sala A ensina fração de um jeito e o da sala B, de outro. É um caos. Como isso é de fundo ideológico, baseado no discurso de que o professor tem que ter autonomia total para definir o que ensina, pior fica. Os professores não tem condição de exercer autonomia. Escola boa tem que ser autônoma e poder desenhar seu próprio currículo, mas tem que ter articulação para fazer isso. O que vemos são pessoas exigindo o controle de tudo. Sou a favor de o professor só ter autonomia quando tiver condições necessárias para exercê-la. Você só dá a chave de casa para a criança que tem juízo. Pensando do ponto de vista do aluno, como a categoria central do sistema educativo, o resto se perverte. Não faz sentido pensar no direito do professor, do interesse da categoria, se o aluno está diante de um professor que não foi bem formado. O que é melhor: dar autonomia ou orientar para que ele faça algo que ajude o aluno?

Recentemente, um grupo de professores no Quênia passou a utilizar roteiros de aula que devem ser seguidos à risca. Como parte da metodologia, o docente não pode ampliar a aula para além do roteiro. Um estudo mostrou avanços significativos no desempenho dos alunos. O senhor acha que, em casos extremos, essa seria uma alternativa?

Claro, o ensino estruturado é isso. Há estudos que mostram que os países com pior desempenho educacional são os que mais demonstram melhorias quando adotam materiais estruturados para as aulas. Óbvio que são medidas curativas, mas é o tipo de estratégia adequada enquanto se conserta a base do sistema. Até lá, não se pode dar autonomia para quem não tem condições. Contudo, o que se nota pelas revoluções educacionais dos países que hoje estão no topo lista do Pisa (avaliação de educação mundial feita pela OCDE) é que eles seguem as mesmas práticas, que incluem currículo, mas vão além, envolvendo formação de professores, definição de estrutura escolar, organização do sistema de ensino, orientações para cursos superiores que formam docentes. No Brasil, cada um pensa de um jeito e não vejo caminhos para melhorias a partir da lógica atual.



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